A infância vivida abaixo da linha da pobreza

Sete ou oito homens, o mais velho deles aparentando não ter mais que 20 anos, ficam de pé no meio de uma rua de chão batido no Bairro Renascer, em Criciúma. Um automóvel chega perto deles, joga pela janela algo que parece ser crack e sai em disparada. Cada um dos jovens pega um pouco da droga e segue caminho, sem pressa. O carro da reportagem que está por perto não os intimida.
A poucos metros dali, numa casa aos fundos de outra, feita de alvenaria, inacabada, sem forro, sem vidros nas janelas, sem revestimento no chão, sem reboco, sem pintura, sem telefone e, às vezes, sem comida, seis crianças brincam de escolinha e fazem planos pouco esperançosos de um futuro próspero.
Crianças brincam de “escolinha” no Bairro Renascer, em Criciúma
Com idades entre dois e 12 anos, os pequenos usam um pedaço de aglomerado da janela como quadro negro. Na escola, ainda não chegaram a aprender sobre política e economia, mas sentem na pele os efeitos mais desastrosos que más decisões nessas áreas podem causar. Mesmo numa região com índices de desenvolvimento humano considerados elevados na maioria dos municípios, o número de famílias vivendo em situação de extrema pobreza impressiona.
Nas 27 cidades que compõem as microrregiões de Araranguá e Criciúma, são mais de 7,5 mil pessoas que vivem com menos de R$ 70 por mês, além de benefícios do Governo. De cada três pessoas extremamente pobres, uma tem 14 anos ou menos. Em números absolutos, Criciúma, a cidade mais populosa da região, lidera: são mais de 400 menores de 15 anos abaixo da linha da pobreza, segundo dados de 2010 do Ministério do Desenvolvimento Social. Como ficam escondidas em subúrbios, longe dos olhares de quem tem poder para mudar, a situação se perpetua.
Festas de aniversário imaginárias
A “professora” Susana, de 12 anos, é a mais velha e a que menos fala. Três dos “alunos” são irmãos dela. Os outros dois são primos. A garota olha para uma parede e fica pensativa enquanto a tia, Isabel, conta a história da família. “Os pais deles são separados. A mãe abandonou, o pai é ausente. Paga R$ 200 de pensão por mês. Eles vivem aqui com a avó e é muito difícil, porque hoje tu vais ao supermercado e, com R$ 300, não consegue trazer quase nada”, relata. Susana interrompe. “Mas, em todo dia 1º de janeiro, eu fico metade triste e metade feliz. É que nesse dia é o meu aniversário e nunca tem festa, mas aí eu faço de conta que todos os fogos no céu são para mim”, diz a menina.
A avó, Margarida, tem 64 anos e cuida de todos com R$ 380 por mês, valor que inclui a pensão do pai das crianças e a ajuda do Bolsa Família. “Meu marido tem câncer de próstata e toda a aposentadoria dele é gasta com remédios. A gente vive muito com a ajuda dos vizinhos e da igreja que tem aqui perto”, explica. Ela foi morar na casa antes de ficar pronta porque não tinha mais para onde ir. Há buracos nos tijolos das paredes, o chão é irregular. Os colchões são finos e desconfortáveis. O ambiente em volta da casa é pouco propício para uma infância saudável.
Ambiente em volta da casa é pouco propício para uma infância saudável
Em casa, as crianças comem arroz, feijão e, às vezes, ovo. A alimentação escolar é a salvação para que nenhuma delas passe fome. “Tem dia que um dos meus netos chega em casa todo feliz dizendo: ‘vó, hoje eu comi tanta coisa boa’”, conta Margarida. “Coisa boa”, no caso, é carne, salada ou iogurte. Isabel, nora de Margarida, mora na casa da frente e é mãe de duas das crianças, que passam a maior parte do tempo na casa da avó, brincando com os primos.
Bullying e carta a Celso Portiolli
Lúcia, a segunda menina mais velha, tem 11 anos. Ela é negra e tem o cabelo extremamente crespo, o que a faz vítima constante de bullying na escola. Por isso, sempre pede como presente de Natal, mesmo sabendo que não vai ganhar, um alisamento de cabelo. Espera que assim seja poupada das brincadeiras maldosas, nem que seja por um período.
Mas a demonstração mais emblemática das dificuldades pelas quais a família passa é uma carta escrita por Poliana, de oito anos. A correspondência teria como destinatário Celso Portiolli, na esperança de receber uma atenção do apresentador do SBT para um quadro em que a produção “realiza sonhos” dos telespectadores. “Oi, Celso. Meu nome é Poliana, moro com meus avós, meus tios, meus irmãos e meus primos. Meu pai é separado da minha mãe e o meu pai vem ver a gente, mas não todo dia. Às vezes ele traz ‘rancho’ ou dá R$ 200 de pensão. Não dá para os nossos alimentos e para outras coisas…“, relata a menina na carta, que não chegou a ser enviada. No fim, faz o pedido: “Isso que é o meu desejo: ter a minha casa pronta e a minha família“.
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No mercado, só se pode atender às necessidades básicas

Em alguns municípios, a parcela das crianças que vivem em extrema pobreza ultrapassa os 5%. É o caso de Morro Grande, Praia Grande, Orleans, São João do Sul e Jacinto Machado, onde a faxineira Marta vive com os quatro filhos. Há meses em que o “rancho” dela pode ser passado no caixa-rápido do supermercado – aquele que alguns estabelecimentos reservam para quem compra poucos itens. O extremo do básico é o suficiente para que ela e os quatro filhos passem o mês. A compra só fica um pouco mais cara porque a menina mais nova, Joana, três anos, adora comer carne e, às vezes, deixa o arroz e o feijão de lado, preferindo um pedaço de frango.
Comprar brinquedo, nem pensar. Os que os meus filhos têm vieram por doações ou são eles mesmos que fazem”,
Marta, moradora Jacinto Machado
Pouco acostumada a receber visitas, Joana se esconde atrás da perna da mãe enquanto esta tenta justificar a bagunça em que a casa se encontra: “fiquei fora o dia todo, cheguei agora, sabe como é”, repete.
Quando não está agarrada à perna da genitora, está ao lado de um dos irmãos mais velhos, onde também se sente segura. Sorri timidamente quando alguém faz uma brincadeira. Volta e meia, um feixe de luz do sol entra por um dos muitos buracos das paredes da casa, ilumina parte do rosto dela e revela um pouco de areia grudada, um vestígio da brincadeira recente com os irmãos.
Banheiro? Só na casa da vizinha
Abraçada a um dos brinquedos favoritos — um bicho de pelúcia cuja cabeça murchou depois que um corte na altura do pescoço permitiu que todo o algodão saísse de dentro —, a menina quase não fala. “Ela é curiosa. Fica observando e, quando menos se espera, começa a repetir tudo o que ouve. É muito esperta”, comenta a mãe, Marta, de 47 anos.
A mulher vive com os quatro filhos, com idades de três, nove, 12 e 13 anos. Separou-se do marido ainda neste ano. Mora numa casa no Bairro Jardim Azaleia, em Jacinto Machado. A moradia é, para usar de eufemismo, precária. A TV e o sofá, ambos desgastados, ficam na cozinha. Uma porta de menos que 50 centímetros de largura dá acesso ao único quarto da casa, onde toda a família dorme. Entre as madeiras que compõem as paredes da casa, há espaços por onde é possível ver a rua e a terra embaixo do assoalho. Banheiro? Só na casa da vizinha.
Um salário-mínimo: o auge
O último brinquedo que Joana ganhou foi um balanço, há quase um mês. Era quando Marta tinha um emprego temporário como empregada doméstica em período integral e ganhava um saláriomínimo. Foi o auge da vida financeira dela. Desde então, trabalha meio período e recebe pouco mais de R$ 300 por mês, além do Bolsa Família. Faz faxinas para complementar a renda, enquanto aguarda ser chamada pela Prefeitura por causa do concurso público que fez e foi aprovada. “Hoje é difícil porque há muita gente fazendo faxina”, queixa-se. “Gasto no máximo R$ 400 por mês de comida e só dá para comprar o básico, porque somos cinco. Arroz, feijão, às vezes, macarrão e um pedacinho de uma carne mais barata. Depois tem a água, que é R$ 20, e a energia, que dá R$ 40 ou R$ 45. Compro uma ou outra roupa quando precisa. É difícil pagar tudo, mas sempre corro atrás”, assegura Marta.
Não tem telefone em casa, nem fixo, nem celular. “Comprar brinquedo, nem pensar. Os que os meus filhos têm vieram por doações ou são eles mesmos que fazem”, acrescenta. As crianças brincam de pipa, andam de bicicleta ou jogam Playstation na casa do vizinho. Todas estudam e fazem atividades fora do horário de aula. A família é assistida pela Secretaria de Assistência Social do município.
“Para os meus filhos, quero que estudem para ter uma profissão digna. Professor, policial, mecânico, qualquer coisa”, espera a mãe.
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Falta de perspectivas alimenta ciclo da pobreza

Os 27 municípios que compõem as microrregiões de Criciúma e Araranguá abrigam 2,5 mil crianças que vivem em situação de pobreza extrema — isto é, com renda familiar per capita inferior a R$ 70 por mês, além de benefícios como o Bolsa Família. Os dados de 2010 do Ministério do Desenvolvimento Social, cruzados com a contagem de população feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) no mesmo ano, revelam que mais de 2% dos menores de 15 anos vivem nessa condição.
Família estruturada é metade do caminho. Para isso, o Estado tem que estar presente”,
Christian Deboita Medeiros, sociólogo
Entre as pessoas acima desta idade, o índice é menor: 1,1%. Por que as crianças são mais atingidas pelo problema? Para o sociólogo Christian Deboita Medeiros, elas são o reflexo e o meio pelo qual o círculo vicioso se mantém. “Houve um momento no Brasil, depois do período do café, quando a indústria externa veio atraída pela mão de obra barata, que 49% da população economicamente ativa trabalhava informalmente”, explica Medeiros. “Se a criança é obrigada a trabalhar cedo, ela não estuda e reproduz a miséria. Vai trabalhar em serviços domésticos ou na agricultura”, acrescenta.
O sociólogo ainda faz um alerta. Para ele, “soluções” assistencialistas são importantes, mas apenas paliativas. “A política de longo prazo tem que ser transformadora. Educação de qualidade vinculada ao mercado e coibição do trabalho infantil. Família estruturada é metade do caminho. Para isso, o Estado tem que estar presente”, afirma. Segundo Medeiros, a situação de vulnerabilidade tem apenas uma causa: a falta de perspectivas de um futuro melhor.
Inflação entre pobres é mais cruel
No início deste ano, o Governo Federal chegou a anunciar o fim da miséria no Brasil, sob a justificativa de que nenhuma família brasileira tem renda per capita mensal inferior a R$ 70. O limite foi adotado em 2009, mas não foi reajustado desde então. Em maio, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem mostrando que o valor usado como referência deveria estar em mais de R$ 86 se fosse corrigido pela inflação. A falta do reajuste esconde que 27 milhões de brasileiros continuam nessa condição. O Governo Federal alega que o limite segue o padrão do Banco Mundial, de US$ 1 por dia.
Investimos bilhões nos estádios para a Copa. Enquanto isso, no Mato Grosso, faltam silos para armazenar a safra de milho”
Ênio Coan, economista
Para o economista Ênio Coan, o efeito da inflação é ainda mais cruel nas famílias de baixa renda. “Os produtos cujos preços mais variam são os da cesta básica, aqueles de produção sazonal. Esses sofrem uma variação muito grande e o peso deles nos índices de inflação são pequenos e isso quase não aparece. No fim, as maiores vítimas são as crianças”, explica.
Educação para a cidadania
Para ele, a imagem propagada pelos governos quanto ao combate à pobreza ainda é distante da realidade. Coan acredita que não apenas as crianças precisam desfrutar de educação de qualidade, mas os adultos também.
A justificativa é simples: quem gerencia finanças das famílias deve ser capaz de reduzir os efeitos da pobreza. Entre os adultos extremamente pobres na região, 9,3% são analfabetos. Desses, 68% são chefes de família. “Conheço empresários que dizem que o próprio empregado prefere receber parte do salário em cesta básica, porque o dinheiro ele acaba gastando com outras coisas. Não quero dizer que os adultos devam voltar para a escola formal, mas precisam ser educados para a cidadania”, aponta.
Coan ainda ressalta a importância de melhorar as condições de logística no país. “Nós investimos bilhões do dinheiro público nos estádios para a Copa. Enquanto isso, no Mato Grosso, faltam silos para armazenar a safra de milho e os grãos ficam jogados a céu aberto”, exemplifica.
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Região sempre se preocupou com as crianças, diz historiador

O historiador Mário Belolli explica que a pobreza no Sul de Santa Catarina, especialmente em Criciúma, remonta à crise da mineração após a Segunda Guerra Mundial, quando o mineral foi em grande parte substituído por petróleo e operários que vieram de outros lugares para trabalhar nas minas de carvão começaram a ficar desempregados.
O papel da imprensa é mostrar para a sociedade quando ela está sendo enganada”,
Mário Belolli, historiador
“Foi nessa época, para atender aos filhos desses trabalhadores, que surgiram a Sociedade Criciumense de Assistência aos Necessitados (SCAN, hoje Bairro da Juventude), a Sociedade de Assistência aos Trabalhadores do Carvão (SATC) e outras organizações ligadas à Igreja Católica. Clubes como o Lions e o Rotary também foram importantes”, lembra Belolli.
Ele avalia de forma positiva o fato de que a região “sempre procurou o máximo possível dar atenção às crianças”. “Se não fosse todo esse esforço, seria um desastre muito maior a situação das crianças, hoje, em Criciúma”, considera.
Para o historiador, a política é a chave para a resolução do problema, se bem usada. “Nós precisamos de estadistas, pessoas que não se preocupem apenas com a próxima eleição. A sociedade não reage porque, muitas vezes, não tem conhecimento para isso”, avalia o historiador. “Os veículos de comunicação falham quando deixam de discutir esses assuntos. O papel da imprensa é mostrar para a sociedade quando ela está sendo enganada”, conclui Belolli.
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Educação, o caminho para um futuro diferente

Numa das paredes da casa humilde de uma família de Jacinto Machado, apresentada na primeira parte, Marcos, 12 anos, aparece em uma foto emoldurada. No retrato, ele segura o diploma de conclusão dos primeiros anos do ensino fundamental. A imagem é uma amostra da estratégia da família para um futuro melhor: pela educação.
Por isso, ele, a mãe e os três irmãos estão de pé todos os dias às 6h30min. Fazem, além das aulas regulares, outras atividades recreativas oferecidas pela Prefeitura. Em Criciúma e em outros municípios, também não faltam opções para manter os jovens ocupados com atividades construtivas. Além das opções oferecidas pelas prefeituras, há entidades que trabalham para este fim.
Marcos quer um futuro melhor pela educação
É preciso dar perspectivas
O sociólogo Christian Deboita Medeiros avalia de forma positiva as atividades extracurriculares. “Está comprovado que a oferta de atividades complementares tira a mão de obra do narcotráfico. O que deixa um jovem em situação vulnerável é justamente a falta de perspectiva. As crianças e adolescentes precisam saber que é possível melhorar a vida deles”, afirma.
Marcos, o garoto de Jacinto Machado, tem um sonho quase onipresente nos meninos da idade dele: ser jogador de futebol. Fala com orgulho que é aluno do Projeto Tigrinhos, uma iniciativa do Criciúma Esporte Clube, da Unesc e das prefeituras, com apoio do Governo Federal. A mãe dele, Marta, não se preocupa se o filho não atingir o objetivo, desde que se torne um cidadão capaz de enfrentar os desafios que o aguardam. “Quero que todos os meus filhos estudem o máximo para ter uma profissão digna e para não precisarem, quando tiverem família, passar pelas dificuldades que passamos hoje”, projeta a mãe, na esperança de que, no futuro, as compras da família no supermercado não caibam em duas cestinhas.
* Texto reproduzido do Site http://renanmedeiros.net/herdeirosdamiseria/#1 e autorizado pelo autor.